O dia que mais temia chegou. Um dia banal de setembro, uma tarde sem aviso e, num instante, parte da minha vida mudou.
Quando cheguei à casa onde cresci, deparei-me com o fim daquele que, apesar de tudo, sempre senti como o meu porto seguro – o meu pai.
Ali estava eu, diante do homem que disse, tantas vezes, “A minha Lena”, um eco que agora apenas ressoa na minha memória. Foi como se uma parte de mim se tivesse quebrado, como se algo dentro de mim ficasse suspenso no tempo.
A nossa história nunca foi linear, mas era a nossa história. E eu amava-o com toda a minha força, de forma quase incondicional. Ele era o meu protetor, a âncora da minha existência, a certeza de que, enquanto estivesse ali, eu teria um lugar seguro no mundo – uma crença que carreguei, apesar de, muitas vezes, também me ter limitado. Mas o tempo, que tudo transforma, trouxe consigo uma despedida para a qual nunca estamos verdadeiramente preparados. Agora, sem a sua presença, precisei de aprender a olhar para mim e a perceber quem sou para além desse amor, que sempre me moldou.
O luto traz consigo um turbilhão de emoções. Há dias de profunda tristeza, em que o cérebro apenas procura o que lhe é familiar e tenta acreditar que nada mudou. Há momentos de revolta, de perguntas sem resposta, de vazio. Mas também há instantes de leveza, onde a gratidão pelo que foi vivido se mistura com a saudade. A dor e a leveza não se anulam – dançam juntas, completam-se.
A verdade é que continuo a acreditar que o amor tem o poder de curar tudo. E quando perdemos alguém que nos amou de forma única – por vezes imperfeita, mas sempre verdadeira –, percebemos o quão essencial esse amor é para nos reconstruirmos. O luto não se atravessa sozinho. Conto com as melhores pessoas do mundo, as minhas pessoas – elas sabem quem são. Os meus filhos têm sido faróis, o Hugo, o leme que me orienta nesta fase. Mas, desde o primeiro momento, soube que precisava de mais.
Procurei ajuda, porque me conheço. Sabia que um espaço onde pudesse despir-me de todas as armaduras e ser quem sou, de corpo e alma, me ajudaria a atravessar esta tempestade. E tem ajudado. A minha psicóloga tem sido uma presença essencial neste processo. Com ela, tenho aprendido a reconstruir-me, a ressignificar-me, a descobrir partes de mim que desconhecia.
Talvez por isso, neste momento de despedida, reconheça o valor de um dos maiores trabalhos que fiz em terapia: reparar a minha relação com o meu pai. Tomei consciência da importância desse processo e do impacto que tem agora no meu luto. Muitos anos antes da sua partida, já sentia a necessidade de lhe dizer tudo o que era importante e relevante, de trazer mais clareza aos meus sentimentos e de fazer tudo o que precisava de ser feito. Com isso, não digo que não falhei, porque falhei. Mas sinto, com toda a certeza, que fui uma boa filha. E acredito que ter essa relação reparada me ajuda agora a seguir em frente sem os “e se” e sem os pesos do que ficou por dizer. Psicologicamente, sabemos que a culpa não resolvida pode tornar o luto um processo mais difícil e doloroso. Não carregar arrependimentos permite que a dor seja sentida de forma mais integrada, sem que se transforme numa prisão.
No meio deste processo, tenho reencontrado pedaços de mim que ficaram esquecidos. A criança que fui, a adolescente que emergiu com sonhos e inquietações – todas elas fazem parte de quem sou hoje. O luto não nos leva apenas a despedirmo-nos de quem partiu, mas também nos faz revisitar quem fomos e perceber que continuamos a crescer. E, na verdade, tomei consciência de que ainda vestia muitas máscaras que julgava já ter arrumado há muito tempo.
E agora, o que fica? Fica o amor. O amor que me trouxe ao mundo e que, mesmo na ausência física, continua a moldar-me. Fica a certeza de que, apesar da dor, há sempre um caminho de reencontro connosco mesmos.
O título deste texto fala de “A Partida e o Reencontro”, mas, na verdade, o reencontro de que falo é comigo mesma.
O meu pai partiu, mas a sua história vive em mim. A sua presença habita nos meus gestos, nas minhas palavras, nas memórias que guardo e que me fazem sorrir. Porque, no fim, a vida pode ser breve, mas nunca será pequena quando é vivida com amor.
2 Responses
Tenho imenso orgulho de ti. Do teu crescimento pessoal, da tua capacidade de evoluir perante as adversidades da vida, da tua singularidade. Claro que gostei imenso do texto. Louvo a partilha de sentimentos que nos ofereceste, assim como a permissão para entrar no teu mundo.
Fico feliz. Adoro-te.
Minha querida amiga do coração, obrigada!
És uma das minhas “pessoas”. Gosto de ti!